sábado, 26 de janeiro de 2008

Do 25 de Abril ao Primeiro Governo Provisório

Trabalho realizado no âmbito da cadeira de Seminário de História 1 - Mestrado em História, Defesa e Relações Internacionais - ISCTE/AM - 2008

1 Introdução

Perante um regime autoritário que durava há 48 anos, coube às Forças Armadas tomar a atitude que todos esperavam, mas poucos se podiam aventurar a assumir. Era necessário alterar a ordem vigente para dar um novo rumo ao país. Foi assim que, a 25 de Abril de 1974, um movimento nascido nas fileiras do Exército se rebelou contra o regime e abriu as portas à transição democrática em Portugal.

Neste trabalho faremos uma análise à conjuntura política e social que se viveu neste particular momento da História contemporânea portuguesa. Após uma sintética descrição das operações de 25 de Abril, serão expostos alguns elementos necessários à compreensão dos factos desse dia e das suas repercussões, de médio prazo, na forma como a sociedade portuguesa viveria os seus primeiros anos de democracia.

Importa explicar alguns antecedentes mais relevantes, no que toca à natureza do regime e às suas crescentes contradições e convulsões internas. Só assim estaremos em condições de observar, com algum rigor, a teia de relações de poder que se formou entre políticos e militares, no período compreendido entre o golpe e a tomada de posse do 1º Governo Provisório, a 16 de Maio.

2 – Movimentações militares

Às três da madrugada de 25 de Abril de 1974, partiram da Escola Prática de Cavalaria de Santarém 231 homens, comandados pelo capitão Salgueiro Maia, que compunham um esquadrão de autometralhadoras e um esquadrão de atiradores de Cavalaria. A coluna deslocava-se em dez blindados Chaimite e EBR, doze camiões, duas ambulâncias, um jipe e uma viatura civil. A coluna entra no Terreiro do Paço cerca das 5:30 da manhã, cercando imediatamente os Ministérios, a esquadra da PSP, o Governo Civil, a Câmara Municipal, o Banco de Portugal e a Rádio Marconi.

Outras colunas se tinham, entretanto, dirigido para Lisboa, tendo partido de quartéis em vários pontos do país. De Viseu a Estremoz, as unidades começaram a sair dos respectivos quartéis por volta da uma da manhã. Quando a coluna de Maia chegou ao Terreiro do Paço já estavam ocupados uma série de pontos-chave, que tinham sido previamente definidos durante a elaboração do golpe: as instalações do Rádio Clube Português, o Quartel-General da Região Militar de Lisboa, os estúdios do Lumiar da RTP, a ponte Marechal Carmona, em Vila Franca de Xira e o emissor do RCP, no Porto Alto, que foram ocupados entre as três e as quatro da manhã. A ocupação do aeroporto viria a ser consumada pouco depois da chegada de Salgueiro Maia ao centro de decisão política da Capital.

A essa hora já tinham sido lidos, por Joaquim Furtado, aos microfones do RCP, dois comunicados nos quais o Movimento das Forças Armadas se apresentava ao público em três ideias fundamentais: em primeiro lugar, apelava às “forças militarizadas” que não interferissem com as manobras militares em curso; em segundo, apelava aos populares que se mantivessem no interior das suas habitações; por último, um apelo “psicológico”, no sentido de que os médicos se dirigissem aos hospitais, deixando transparecer a ideia de que seria utilizada a força das armas caso houvesse resistência ao golpe.

O Comando do movimento estava sedeado no Regimento de Engenharia 1, na Pontinha e executava um plano de operações elaborado pelo então professor na Academia Militar, Otelo Saraiva de Carvalho, que também coordenava as movimentações. O sistema de transmissões elaborado e montado por Amadeu Garcia dos Santos, foi determinante para o sucesso das operações, porque permitia ao posto de Comando ter contacto permanente com todas as Unidades envolvidas e interceptar as comunicações dos elementos que permaneciam fiéis ao regime.

Às oito da manhã, a fragata Gago Coutinho posiciona-se em frente ao Terreiro do Paço, em posição de fogo sobre as posições do MFA, cumprindo uma ordem do almirante Jaime Lopes, então vice CEMA. O próprio Marcelo Caetano terá dado, às dez da manhã, ordem para a fragata abrir fogo, mas o Comandante do navio mandou posicionar as peças com a elevação máxima, o que evidenciava a intenção de não disparar contra as tropas.

Os passos seguintes seriam a ocupação do Quartel-General da Legião Portuguesa e o Quartel-General da GNR. No Largo do Carmo foi onde a situação piorou, mas devido ao que António Telo (2007) classifica de “falta de entusiasmo que caracterizou os defensores do regime, nesse dia”, a superioridade numérica da GNR não se traduziu na relação de forças, porque as massas populares condicionavam a acção das tropas fiéis ao Governo.

Após um compasso de espera, causado pela relutância de Marcelo Caetano em entregar a rendição a um oficial subalterno, a situação é resolvida quando Spínola chega ao Carmo para receber a rendição do Presidente do Conselho, assinalando o “fim simbólico” do Estado Novo. O Presidente da República, o almirante Américo Tomás, limitar-se-ia a ficar em casa, como refere António Barreto (2000), “à espera dos acontecimentos”, enquadrando a sua postura com “a maior parte da sua carreira política”, ou seja, “não desempenhou papel de relevo”.

3 – Os protagonistas de Abril

A variável “Quem fez o 25 de Abril?” assume uma especial relevância na tentativa de compreensão do cenário político que se lhe seguiu. Telo (2007) refere, com o propósito de responder a esta questão, um estudo de caracterização sociológica, da autoria do coronel Aniceto Afonso e de Manuel Braz da Costa, que apresenta com algum detalhe a distribuição dos oficiais envolvidos, segundo a sua Arma e o seu posto.

A explicação do facto de quase todos os envolvidos serem capitães e majores reside no elemento operacional. O número de comissões que um major normalmente tinha era três. Os capitães teriam cumprido duas. Estas missões tinham-lhes permitido obter uma ampla experiência operacional, visto que as operações militares no Ultramar raramente envolviam Unidades maiores que a Companhia, o que dotava os Comandantes de Companhia de efectiva experiência e controlo sobre as Unidades no terreno.

O número de capitães e majores que se empenharam activamente na preparação do movimento, ou seja, que assinaram documentos que desafiavam o Governo, chegou aos 25%. No entanto, o apoio de cerca de dois terços de todos os oficiais com estas patentes viria a mostrar-se decisivo para o sucesso da operação. Prova disso é que, em todas as unidades envolvidas na tentativa de conter o golpe, apenas um oficial daria ordem de fogo, que não seria cumprida pelos seus subordinados. As ideias fundamentais que podemos salientar desta análise mostram que, por um lado, o MFA sai quase exclusivamente do Exército e sobretudo das Armas (Infantaria, Cavalaria e Artilharia) e por outro, que houve uma intenção declarada de não envolver civis, além dos estritamente necessários para o sucesso da missão.

4 – Antecedentes para a queda do regime

Com o fim da segunda Guerra Mundial, verificou-se uma imposição de regimes políticos aos países que se tinham envolvido na guerra. Por um lado, os países da Europa ocidental adoptaram a democracia “de tipo ocidental”, pluralista e com economias de mercado. Os países que ficaram sob a alçada da União Soviética e do Pacto de Varsóvia adoptariam a democracia popular, de tipo socialista/comunista.

Portugal e Espanha, como não tiveram que se sujeitar às imposições dos vencedores da guerra, puderam manter os regimes que estavam em vigência. Esta manutenção no poder afastaria os dois vizinhos ibéricos dos padrões de vida dos restantes países europeus. Esse desfasamento iria acentuar-se, no caso português sobretudo, ao longo dos anos 50 e 60.

Em 1961, o regime viveu alguns dos seus dias mais difíceis. Alguns acontecimentos militares, determinantes para a posterior queda, dar-se-iam nesse ano, primeiro com o assalto ao barco Santa Maria, pelo capitão Henrique Galvão, depois com o início dos ataques das guerrilhas libertadoras de Angola. Ainda nesse ano, o general Botelho Moniz vê frustradas as suas intenções de promover um golpe de Estado. Hermínio Palma Inácio desvia um avião da TAP e as tropas da União Indiana invadiram os territórios de Goa, Damão e Diu. O ano terminaria com mais uma revolta, desta vez em Beja, “na qual Humberto Delgado estaria envolvido” (Barreto, 2000).

Os últimos anos do regime autoritário português seriam marcados por uma relativa abertura económica face ao exterior. Esta abertura viria a alterar os padrões de vida dos portugueses, que iniciaram uma “emigração maciça para a Europa”, que modificaria “substancialmente a demografia e os comportamentos”, levando a um decréscimo da “população residente, entre 1960 e 1974 (Barreto, 2000). Também a guerra em África seria determinante para alterar substancialmente a relação das estruturas de poder, através da emergência de um forte sentimento de descontentamento, no seio da instituição militar.

Tendo em conta que o poder político tinha deixado de conseguir “criar ou manter um espírito de mobilização nacional”, quando Marcelo Caetano chega ao poder, Portugal era um país internacionalmente isolado, económica e politicamente. A estrutura decisória que havia herdado de Salazar era muito unipessoal, factor ao qual Caetano nunca se haveria de adaptar.

Num clima político de incertezas, subsistiam duas questões de fundo, para as quais se esperava uma resposta clara por parte do regime: as liberdades dos cidadãos e a guerra no ultramar. As hesitações de Caetano frustraram as esperanças daqueles que viam no novo líder uma figura de transição para a democracia: “às Forças Armadas (…) não consegue explicar como concebe a condução da guerra ou o seu fim. (…) Irritou a velha guarda do regime” e aos que reclamavam a democracia não concretizou “nenhuma medida de real liberalização” (Barreto, 2000).

António de Almeida Santos afirma que Marcelo Caetano foi “um homem a quem a História ofereceu a Glória” e “por insensatez”, a recusou (Telo, 2007). Entendemos por aqui que, se Caetano tivesse promovido uma solução de transição negociada, como se verificou na vizinha Espanha, teria ficado na História como o homem que tinha promovido a Democracia em Portugal e não como um ditador deposto.

Não pondo de parte as questões sociais, inerentes ao período histórico que se vivia no início dos anos 70, podemos afirmar que, o que proporcionou verdadeiramente a realização do golpe de Abril, foram as questões orgânicas das Forças Armadas, designadamente as de cariz hierárquico. Como a ruptura com o regime só era possível de operar a partir das Forças Armadas, esta foi uma questão decisiva.

5 - Um “movimento patriótico das Forças Armadas”

O movimento que levou às operações de 25 de Abril foi tinha por elemento central o controlo dos edifícios dos meios de comunicação. O controlo dos média era considerado indispensável, para assegurar que seriam desencorajadas quaisquer tentativas de resistência aos hesitantes. Este é o elemento fundamental de diferenciação que Telo (2007) nos fornece para enquadrar o golpe de Abril no historial português de golpes militares.

Este foi um movimento foi “raro na História de Portugal” e que “nos últimos 200 anos só encontra paralelismo em três outros acontecimentos”, que são a Revolução Liberal de 1820, o movimento da Regeneração, em 1851 e o 28 de Maio de 1926. Para fundamentar as suas afirmações, o autor elaborou uma classificação de 13 características, de acordo com as quais identifica pontos de comparação que representam um traço de união entre movimentos aparentemente tão distintos, no tempo como nas motivações particulares:

1) Todos estes movimentos são quase exclusivamente militares. Os civis são conscientemente afastados do plano de operações, para que este se mantenha exclusivamente militar.

2) Todos os movimentos reúnem um amplo consenso no seio das Forças Armadas. Apesar de terem, à partida, origem em pequenos núcleos conspirativos, os movimentos alcançam um apoio generalizado dentro da Instituição militar, o que permite o sucesso dos golpes.

3) Nenhum destes movimentos encontra resistência significativa em nenhum sector da sociedade portuguesa, seja civil ou militar, o que permitiu que estas acontecessem com um mínimo de derramamento de sangue.

4) Estes movimentos assumem a forma de “uma marcha da província sobre a Capital”: a Revolução de 1820 parte do Porto, assim como a Regeneração. O 28 de Maio parte de Braga e o 25 de Abril parte de diversas localidades. É em Lisboa que todos os movimentos encontram alguma resistência, ou pelo menos onde as Unidades não aderem imediatamente aos movimentos revoltosos. Segundo o autor, “é como se o país profundo se erguesse e, com peso esmagador, destruísse num golpe irresistível, as instituições e a forma em funcionamento da Capital”.

5) Todos estes movimentos surgem com a sustentação da ideia de que a “Pátria está em perigo”. O autor chama-lhe “um cimento ideológico difuso”, no qual se congregam as mais variadas tendências em torno da ideia de “salvação da Pátria”

6) A formação dos movimentos acontece quase totalmente nas fileiras do Exército. Apenas no 25 de Abril houve a participação, embora não explícita, da Força Aérea, com a colaboração de alguns oficiais na operação de ocupação do aeroporto.

7) Os escalões intermédios das hierarquias estão na origem da formação destes movimentos. Apenas na Regeneração o golpe é comandado por um Marechal, com o apoio dos oficiais subalternos. Neste ponto o autor reforça a ideia de que a mobilização de efectivos revoltosos parte sempre dos oficiais com experiência operacional.

8) Estes quatro movimentos foram sempre precedidos pelo respectivo “ensaio geral” falhado. O “ensaio geral falhado” do 25 de Abril foi a saída das Caldas da Rainha a 16 de Março. Telo cita duas visões dos acontecimentos de 16 de Março: a primeira, de Jaime Nogueira Pinto, que sublinha a ideia de que os “maus”, ou os “comunistas”, se afastaram do movimento revoltoso “a tempo da intentona”. Por outro lado é referida a visão de Melo Antunes, que acusa a “ala spínolista” do movimento revoltoso de “ter precipitado os acontecimentos, convencida de que era capaz de arrastar, por inércia, uma séria de unidades, mesmo não havendo uma organização ainda suficiente amadurecida e planificada”.

9) A conjuntura que precedeu cada um destes momentos era marcada por conflitos de “anormal intensidade”, que obrigaram a instituição militar a uma necessidade de renovação. Essa ideia formou-se sempre, sublinha novamente o autor, nos escalões intermédios das hierarquias, com o suporte ideológico de “salvar a Pátria” de um poder político “desactualizado e é incapaz de se auto-reformar”, que necessitava da ajuda da instituição militar para executar reformas no Estado. É referida ainda a ideia de que estes golpes não provocam, em regra, derramamento de sangue, porque “os oficiais envolvidos nas guerras criaram fortes laços de camaradagem entre si, nos teatros operacionais” e tendem a desobedecer a ordens para disparar sobre os seus camaradas.

10) Estes movimentos foram sempre precedidos por tentativas de reformas no interior dos respectivos regimes, o que indica que os líderes políticos, dos respectivos momentos históricos, tinham consciência de que havia graves problemas no modelo de organização e gestão do Estado, e estavam a tentar levar a cabo reformas para consolidar o seu poder

11) Há um sentimento generalizado, na maioria da população, de que haverá apoio popular a uma mudança protagonizada pelas Forças Armadas. O autor refere que houve sempre “apelos mais ou menos insistentes de partes significativas da sociedade para que as Forças Armadas protagonizem a mudança”. O caso mais flagrante, antes do 25 de Abril, foi a publicação, pelo General Spínola, do livro Portugal e o Futuro, que era, nas palavras de Telo, “um convite pouco disfarçado às Forças Armadas para actuarem”.

12) Em todos estes momentos se viviam crises com origem no exterior. O factor internacional foi sempre determinante para causar o descontentamento em sectores que tradicionalmente apoiavam os respectivos regimes. No caso do 25 de Abril, verificamos que surge após a crise petrolífera de 1973. A alteração da conjuntura económica altera a postura dos grupos sociais em relação ao regime.

13) Há sempre presente um conjunto de reivindicações corporativas por parte dos militares.

Assim, num exercício de exclusão de partes, estes quatro movimentos podem ser agrupados numa categoria original: não podem ser considerados golpes porque têm o apoio de uma parte significativa da população; não podem ser considerados levantamentos nacionais pela inexistência de componente civil; não são revoluções porque, além da falta de uma componente civil, não pretendem mudar as estruturas sociais, têm uma motivação exclusivamente patriótica. Como tal, são classificados “movimentos patrióticos das Forças Armadas” ou “movimentos militares de salvação nacional”.


6 – O “código genético de uma Revolução”

O período compreendido entre a tomada do poder pelos militares e a tomada de posse do primeiro Governo Provisório foi decisivo para determinar o modo como se processariam os acontecimentos dos dois anos seguintes. Na opinião de Medeiros Ferreira (1993), terá sido neste período que se estabeleceu o “código genético” para a Revolução que se seguiria. A inicial união e solidariedade entre os militares daria lugar a divisões e disputas pelo poder. Vejamos, portanto, quais as particularidades da operação militar de 25 de Abril, que dariam origem ao cenário de pulverização de poder que se manifestaria de seguida.

O facto do novo poder militar ter sido, quase imediatamente, reconhecido pelos grandes actores da cena política internacional, legitimou a Junta de Salvação Nacional (JSN) na sua qualidade de detentora do poder executivo transitório. “Nada de comparável, pois, às dificuldades que a I República teve para ser reconhecida internacionalmente” (Ferreira, 1993).

As maiores dificuldades sentidas por este Órgão viriam a revelar-se ao nível interno, pois as contradições patentes no Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) viriam a dar origem a uma pulverização do poder, com a “criação de múltiplos centros”, cujas competências não davam espaço de manobra aos decisores políticos. “O facto de não ter havido uma ideologia clara ou um núcleo coerente e coeso” na preparação do golpe foi decisivo para o sucesso das operações, mas isso viria a mostrar-se uma desvantagem, no processo de reconsolidação do poder (Telo, 2007).

O novo poder militar estava marcado à partida, segundo António Reis (2007), por uma clara divisão em duas vias, no seio do MFA: “uma, mais conservadora e defendendo uma solução federalista (…) e outra, mais progressista e não receando a solução independentista”. Neste contexto, a JSN tinha que lidar com estas tendências em disputa de modo a criar uma solução de consenso, que permitisse uma tomada de posição efectiva, para concretizar a “estrutura constitucional transitória” que iria definir a “organização política do País até à entrada em vigor da futura Constituição” (Reis, 1990).

As primeiras medidas legislativas da JSN visaram implementar as mais consensuais medidas do Programa do MFA: a destituição do PR e do Governo, a dissolução da Assembleia Nacional e do Conselho de Estado. Todos estes poderes são aglutinados na JSN. São também imediatamente destituídos os Governadores-gerais das colónias e os reitores das Universidades.

Costa Gomes, em entrevista concedida ao Expresso em 1988, afirma que o facto de ter sido Spínola o escolhido para presidir à JSN se deveu a ter uma “maior relação de proximidade” com Caetano. No entanto, como Costa Gomes admite, “ninguém detinha o poder” efectivamente um novo poder que ”nascia assim dividido à partida, com um centro oficial sem força e um centro efectivo sem funções oficiais”. No entendimento de Melo Antunes (autor principal do Programa do MFA), não podia haver descolonização sem democratização e vice-versa. (Telo, 2007).

No breve período da sua existência, a JSN desempenharia também um papel importante de intervenção, nas questões laborais “que por todo o lado se levantaram”, em torno da “reivindicação da homologação dos contratos colectivos de trabalho” negociados antes do fim do regime deposto (Ferreira, 1993).


7 – O 1º Governo Provisório

O Programa do MFA estipulava um prazo de apenas três semanas para a formação de um Governo Provisório. À recém-empossada JSN, cabia a tarefa de nomear os seus membros. O processo de formação do Governo deveria reger-se, segundo o Programa, recorrendo a “personalidades representativas de grupos e correntes políticas e personalidades independentes”. Este foi um importante período para “o reconhecimento e representatividade dos partidos” (Reis. 1990)

Spínola, enquanto Presidente, teria aqui a oportunidade para aquela que seria “uma das suas poucas vitórias políticas”. Num cenário político extremamente fracturado e fragmentado, o primeiro Presidente da JSN conseguiu impor o seu candidato, tendo a chefia do Governo sido confiada a Adelino da Palma Carlos, “um conhecido liberal com conotações a um dos centros de poder discreto de Portugal” (Telo, 2007).

Spínola terá aceite a inclusão do PCP no Governo sobretudo por querer “responsabilizá-lo abertamente com tarefas no Governo”, visto que este Partido estava “amplamente infiltrado no MFA”, segundo palavras do próprio General. (Telo, 2007). Álvaro Cunhal, Secretário-geral do PCP, seria Ministro sem Pasta, após recusar o Ministério do Trabalho, atribuído a outro membro do PCP, Avelino Rodrigues.

Os restantes Ministros sem Pasta eram Francisco Sá Carneiro, pelo PPD e Pereira de Moura, pelo MDP. O PS ficou com a Pasta dos Negócios Estrangeiros (Mário Soares), com a da Justiça (Salgado Zenha) e da Comunicação Social (Raul Rego). Ao PPD foi coube também o Ministério da Administração Interna. O facto de ter sido o PS a ficar com os Negócios Estrangeiros mostrar-se-ia determinante para a postura do Governo Provisório, pois este tinha “contactos com Willy Brandt e o SPD” (Reis, 1990).

Em relação à Economia e Finanças, os promotores do 1º Governo Provisório concentraram as duas Pastas num único Ministério: “Foi a primeira (e, felizmente, única) vez na História de Portugal em que desapareceu a autonomia das Finanças, (…) ponto absolutamente vital da acção do Estado, como se este não tivesse qualquer significado” (Telo, 2007). O Ministro da Coordenação Económica seria o independente Vasco Vieira de Almeida.

A JSN, pelo peso que tinha junto das massas populares, que se lançavam em amplas manifestações reivindicativas, nomearia o coronel Ricardo Durão para ocupar a Pasta do extinto “Ministério das Corporações e Segurança Social, logo baptizado de Ministério do Trabalho” (Ferreira, 1993).

O facto do Programa do 1º Governo Provisório ter sido “por ironia” redigido por Freitas do Amaral, após uma “carambola” entre Spínola, Veiga Simão e Adelino Amaro da Costa, que incumbe Freitas do Amaral desta tarefa é um “pormenor significativo sobre o funcionamento e a coesão do Governo” (Telo, 2007), pois nenhum dos seus membros tinha participado na sua elaboração, ou sequer conhecia o conteúdo do Programa do Governo que integrava.


8 – Conclusões


Da análise efectuada, podemos conjecturar quatro conclusões de fundo, que apresentamos nos seguintes termos:

1) A situação interna do regime político herdado por Marcelo Caetano não dava, à sua liderança, alternativas viáveis que não passassem pela democratização e, de alguma forma, pela descolonização. Além das sucessivas crises internas no seio da Instituição militar, de ordem organizacional, o Governo autoritário português via-se perante uma situação incontornável de desmantelamento do seu Império colonial, por um lado e uma grave crise social e de relacionamento com a sociedade civil, por outro.

2) O 25 de Abril não pode ser considerado um golpe militar, uma revolução ou um levantamento nacional, mas sim um “movimento patriótico das Forças Armadas” ou um “movimento militar de salvação nacional”. Além disso, põe pela primeira vez em evidência a importância dos meios de comunicação em operações militares desta natureza. Sem a estratégia mediática patente no plano de operações, não teria sido possível ao MFA

3) Apesar do sucesso como estrategas de operações militares, os militares responsáveis pela preparação do golpe de Abril viriam a denotar, fruto de um elevado défice de experiência política, pouca capacidade para lidar com o poder do Estado. A urgência que apresentavam na sua intenção de entregar rapidamente o poder aos civis, criaria as condições para um poder fragmentado e pouco eficaz.

4) Tendo em conta que a JSN era composta apenas por oficiais superiores, quem efectivamente detinha o controlo das colunas militares que estavam nas ruas (os capitães e majores que tinham promovido o golpe), não estava representado na Junta. Isto fez com que estes militares mantivessem o MFA como centro efectivo de poder, ao não aceitarem a sua extinção imediata. O peso exercido sobre o poder político, por parte de uma estrutura militar pouco coesa, mas com um papel político importante obrigaria à formação apressada de um Governo, que mais do que Provisório, foi improvisado.


9 – Bibliografia:

Barreto, António, “A Revolução de 25 de Abril de 1974”, in António Barreto e Maria Filomena Mónica (coord.), Dicionário de História de Portugal, Suplemento, Vol. 9, Lisboa, Livraria Figueirinhas, 2000, pp. 250-262.

Ferreira, José Medeiros, História de Portugal, vol. VIII, Portugal em Transe (1974-1985), Lisboa, Círculo de Leitores, 1993.

Reis, António, "A revolução de 25 de Abril de 1974, o MFA e o processo de democratização", in António Reis (dir.), Portugal Contemporâneo, Volume VI, Lisboa, Publicações Alfa, 1990

Telo, António José, História Contemporânea de Portugal: do 25 de Abril à actualidade, Vol. 1, Lisboa, Presença, 2007


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